O livro Ecrire la mer, publicado pela Citadelles & Mazenod, faz parte de uma série de publicações temáticas que exploraram diversos assuntos, como o amor, a natureza e o sonho na pintura. A obra tem 500 páginas e inclui uma centena de textos selecionados e cuidadosamente comentados que traçam a evolução do mar na literatura ocidental. O autor optou por misturar os grandes clássicos da literatura antiga com autores contemporâneos.
Uma visão europeia do mar
A seleção de autores, em sua maioria franceses, incluiu também escritores de outros países europeus, como Itália, Espanha, Alemanha e Inglaterra, com ênfase especial na literatura antiga.
A evolução do mar na literatura: da angústia ao devaneio poético
Um dos aspectos mais fascinantes do livro é a descrição da evolução da relação do homem com o mar, refletida ao longo dos séculos. “Durante muito tempo, o mar foi sinônimo de perigo”, explica o autor. Na Antiguidade, o mar era visto como um espaço aterrorizante, portador de mistérios e ameaças. Ulisses, em A Odisseia, navega entre criaturas mitológicas como as sereias e deve enfrentar passagens aterrorizantes, como as de Cárbide e Cila. “O mar era o horror, a angústia do afogamento”.
Essa visão do mar como um espaço perigoso perdurou até a revolução da marinha a vapor no século XVIII, que facilitou o acesso ao mar, transformando gradualmente o oceano em um local de lazer e viagem, como mostra Robinson Crusoé, de Defoë, ou os escritos de Stevenson. O autor observa que “o mar tornou-se então um espaço de aventura, viagem e lazer”.
O mar: do infinito à interiorização poética
No século XX, o imaginário literário evoluiu ainda mais. O autor evoca uma transformação na maneira como os escritores percebiam o oceano. “A partir do momento em que o espaço marinho se torna muito mais acessível, o mar real interessa menos ao escritor”, explica ele. Ele observa que o mar agora é “interiorizado” e se torna uma metáfora do infinito ou do inconsciente humano, como mostra o poema “O Homem e o Mar”, de Baudelaire.
Assim, “o mar se torna um espelho da consciência humana”. Baudelaire faz do oceano um reflexo da busca interior do homem, um espaço de introspecção mais do que de confronto externo. Essa dimensão interior também se manifesta na obra de Michelet, La Mer, onde o escritor associa o mar à imagem materna. “Ele fala do mar como uma mãe que molda a terra”, explica o autor, destacando a ligação simbólica entre o mar e o nascimento.
O olhar sobre o mar evoluiu ao longo dos séculos, passando do medo à admiração, do inacessível ao introspectivo, ao mesmo tempo em que carregava uma profunda riqueza simbólica.
O mar, entre a experiência imediata e as questões ecológicas
Na literatura contemporânea, o autor nota uma ausência marcante de preocupação ecológica entre os escritores, apesar dos desafios climáticos atuais. “Os escritores contemporâneos não têm consciência dos desafios climáticos relacionados ao mar”, observa ele. No entanto, as questões ambientais estão amplamente presentes nos ensaístas, mas “a literatura continua a ser da ordem da experiência imediata”. O autor questiona-se se, além de escritores caribenhos como Chamoiseau, a preocupação com a preservação da natureza é realmente uma preocupação nas obras literárias.
O contraste é marcante com os escritores da “Nature writing” americana, como Thoreau, que tinham uma relação mais direta e consciente com a natureza. Por outro lado, na literatura francesa, a relação com a natureza é frequentemente mais distante, como explica o autor ao evocar os jardins franceses da época clássica, concebidos para oferecer uma visão controlada do mundo.
A imersão na natureza: o mar para os pintores
Quando se evoca a ligação entre os artistas e o mar, Daniel Bergez destaca uma especificidade no trabalho dos pintores: “Os pintores da natureza, e por exemplo já os pintores italianos do século XVIII, têm uma relação imediata, tátil e sensual com a natureza. ” Para esses artistas, o mar não é uma abstração intelectual, mas um elemento vivido em sua materialidade. O surgimento do impressionismo no século XIX marca uma importante virada: “A pintura não é mais uma arte de interior, é uma arte de exterior, onde a luz e as sensações se tornam centrais. Para os impressionistas, como Claude Monet, o mar se torna um lugar de “fusão com a natureza”, a oportunidade de uma experiência quase ecologista, embora não conceituada. Monet, em particular, pintou ao ar livre, capturando a luz real do mar, longe da luz artificial do ateliê.
No entanto, com o advento da arte abstrata e cubista, essa ligação imediata com a natureza se dissipa. “A arte abstrata é um esquecimento total da natureza.” No século XX, a arte moderna parece se afastar do aspecto externo do mar para privilegiar a interioridade, uma temática que também se encontra na literatura.
O mar, um mundo de oposições: vida e morte
“O mar carrega em si um imaginário onde coexistem a vida e a morte”. O autor destaca que, em obras como as de Hugo, o mar se torna um lugar de luta e regeneração, de vida e morte. Em Os Trabalhadores do Mar, Hugo ilustra o confronto entre o homem e o mar, com uma dimensão mitológica complexa, simbolizando ao mesmo tempo Eros e Thanatos. O mar, nessas narrativas, é um terreno de conflito eterno, mas também um lugar de realização.
A ideia do mar como uma dualidade entre a vida e a morte tem suas raízes na mitologia. O autor evoca a mitologia grega, a figura de Poseidon, deus do mar e do mal, mas também a de Vênus, nascida da espuma do mar, que se torna “uma metáfora do nascimento e da fertilidade”. Essa dualidade também se encontra na visão trágica do mar, como na obra de Melville Moby Dick, onde o oceano é ao mesmo tempo o espaço da busca e da destruição, um “enigma” que reflete a luta eterna entre a humanidade e o desconhecido abissal.
O mar, um espelho da humanidade
O autor conclui que o mar é um espaço complexo e paradoxal. É ao mesmo tempo o lugar da aventura, do desconhecido, mas também um espaço de introspecção, onde o homem explora seus próprios limites. Carregando consigo símbolos de vida e morte, de nascimento e destruição, o mar continua a inspirar tanto escritores quanto artistas, aos quais oferece uma fonte inesgotável de inspiração.
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