Villes flottantes

Entrevista com José, contador de histórias

José, pescador indígena da região de Raposa, no Maranhão, testemunha sua íntima ligação com a natureza, o mar e as entidades que ele descreve como encantadas. Ele partilha uma série de experiências vividas, misturando espiritualidade, visões e relatos de pesca. Este testemunho ilumina uma concepção do mundo em que as forças naturais são respeitadas, temidas e honradas.

Uma ligação sagrada com a natureza

Desde os primeiros minutos da entrevista, José destaca o lugar essencial da natureza na vida dos povos indígenas: «Como indígena, posso falar da natureza, das plantas, da pesca, do mar, das lagoas, dos rios, das florestas… São todas coisas que fazem parte de nós, da natureza.» Ele insiste no seu papel como representantes da Mãe Terra: «Somos indígenas e representamos a Mãe Terra, é a Terra que nos dá tudo.»

Respeitar as águas para pescar

Ele evoca os encantados, seres sobrenaturais ligados à água e à floresta, presentes na vida quotidiana. A relação com os encantados é regida pelo respeito e pela reciprocidade: «Temos de rezar, pedir permissão às águas, à mãe da água, aos encantados da água para que tragam peixe.» José conta que alguns pescadores oferecem-lhes bebidas para obter uma pesca abundante: «Algumas pessoas até lhes dão um doce, servem-lhes uma bebida…»

Encontros sobrenaturais: o homem de branco

José conta um primeiro encontro impressionante com um encantado, enquanto pescava caranguejos com um amigo. Perto de um banco de areia, ouviu-se uma voz forte, seguida de fenômenos luminosos acima dos manguezais.

Uma silhueta humana apareceu: «Era um homem todo vestido de branco, com sapatos pretos e um chapéu na cabeça, e começou a falar…» O discurso da entidade era incompreensível, «como um estrangeiro», mas o tom da mensagem era tenso. Naquela noite, o seu companheiro de pesca ficou gravemente doente e morreu no dia seguinte com uma forte dor de cabeça.

Figuras animais e transformações

Noutro episódio, José evoca uma entidade que assumiu a forma de um urso preto: «Vi essa criatura atrás de mim… um urso preto, escuro, muito escuro, perto de mim. Peguei na minha faca para me defender, persegui a criatura no mangue, mas ela desapareceu na lama. O meu companheiro de pesca também morreu nesse dia, após uma forte febre. José conclui: «Foi por isso que deixei de pescar com outras pessoas.»

O aparecimento do gorila luminoso

Uma terceira aparição assumiu a forma de um macaco ou gorila estranho: «Um macaco, um macaco grande… os seus olhos eram verdes, da cor de um ovo de peixe.»

Apesar da ausência de agressividade, a presença da entidade era perturbadora. A criatura desapareceu sob a chuva e o vento, num cenário subitamente iluminado.

Os sinais de um mundo espiritual e a erosão da costa

José relaciona essas aparições com mensagens de aviso.

Hoje, ele observa o avanço inexorável do mar: «O mar come tudo. Devora os manguezais, destrói tudo.» Ele apela para ações urgentes: «Se o governo não tomar medidas, não colocar pedras… o mar virá destruir tudo.» »

Uma herança espiritual transmitida pelo pai

José também se lembra da infância com o pai curandeiro: «O meu pai era um xamã que sabia dessas coisas… mas não me ensinou. Eu sinto as coisas da natureza.» Em criança, já tinha visões, febres e encontros perturbadores quando saía para pescar.

Para José, os encantados são entidades antigas, presentes desde a criação do mundo: «Os encantamentos são coisas astrais… E essas coisas nunca deixaram de existir.»

«Quando vejo televisão, não concordo com os biólogos e os cientistas, porque eles omitem essa parte. »

Algumas das suas histórias assumem a forma de perseguições: uma bola de fogo que os segue pela floresta, um objeto voador que assusta animais e homens. José conta com precisão as circunstâncias dessas aparições, insistindo na sua veracidade: «Há muitas pessoas que dizem que isso não existe. Mas eu vi com os meus próprios olhos. »

Ele também menciona fenômenos luminosos nas margens, redes que aparecem e desaparecem, figuras humanas ou animais surgindo da água: um homem que lança uma rede e desaparece, uma vaca com cara de peixe ou ainda um tambor flutuante que se transforma em uma poca, um animal marinho.

Essas histórias sempre têm um significado simbólico: «É preciso entender o que os objetos encantados dizem.»

Uma ecologia espiritual e política

Para José, esses encantados são mensageiros. As suas aparições são avisos. Um deles, por exemplo, teria previsto que o manguezal seria destruído pelo mar. E isso aconteceu: «Ele já fez isso.» »

O que os encantados denunciam é a destruição da natureza pelo homem. «Os encantados vivem com a natureza, com os animais. E quando os animais são mortos, quando as suas casas são destruídas, eles sofrem como o homem. A natureza não fala, mas sofre.»

José denuncia particularmente a agroindústria e as suas consequências: desflorestação, poluição, desaparecimento dos animais, secagem dos rios. Ele fala de uma viagem a Brasília, durante a qual viu as máquinas «devorarem» a floresta: «Homens ambiciosos criaram um monte de máquinas e devoraram toda a floresta. »

Um mundo antes, um mundo depois

José também evoca uma época em que as comunidades indígenas viviam em autonomia: « Quando eu era criança, nas aldeias indígenas, todos faziam a sua própria agricultura, plantavam o seu arroz, o seu milho, a sua mandioca… Hoje, não há mais nada. »

Ele critica as políticas públicas que favorecem a agroindústria, a exportação e a concentração de terras em detrimento das populações locais: «O governo brasileiro é o primeiro a apoiar este projeto. Exportamos milho, feijão, soja… E as pessoas aqui, no Brasil, morrem de fome.»

A terra como mãe e último refúgio

Em conclusão, José apresenta uma visão profundamente enraizada numa espiritualidade da vida: «A natureza sofre, e nós também, os indígenas, que somos filhos da natureza, da nossa mãe Terra. Porque ela nos dá tudo. »

Ele apela a um respeito sagrado por esta terra: «Deus criou o homem para cuidar da natureza. Não para destruí-la.»

E conclui, com humildade e seriedade: «Sou brasileiro. E luto pela nossa mãe terra. É a nossa mãe que devemos respeitar e amar.»

 


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